Sala 2
Passeios incertos no meu reino
FÁTIMA LAMBERT
Os meus passeios do confinamento reconheceram recantos inesperados dentro da casa que habito. Creio que é muito provável que nos tenha acontecido algo semelhante a todos. A ideia de circulação e permanência dentro de casa foi o ponto de partida para idealizar esta curadoria através de núcleos artísticos sucessivos, estabelecendo concatenações estéticas, para mostrar em sequências as imagens das obras dos artistas em presença. Assim, entre a sala de estar, o escritório, os corredores e a pequena sala de trabalho que, outrora foi o quarto de criança, as paredes adquiriram elasticidade, o teto elevou-se (magicamente) e nelas foi possível alojar estas imagens tão intensas que trespassam a nossa alma e emoções.
Deixem-me enaltecer as obras destes 33 artistas, permitam-me atribuir-lhes sentidos que, porventura, não foram os que dominaram a criatividade e a conceção de seus autores. As imagens destas obras, circulam sob diferentes suportes e empregam técnicas diversas. Todavia, com algumas exceções conheci-as sob o denominador comum: imagens plasmadas no ecrã do computador que vou arrastando de sala em sala, pelo quarto e na varanda, sem que tenha vontade própria (ou sim, pois me domina). As imagens, e não apenas as imagens dos retratos, lembrando Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot, remetem sempre para uma ausência tornada presente. Neste caso, da obra em si mesma, ainda que a sua espessura e matéria possam ser ínfimas ou de extrema volumetria. Imagens, são imagens que substituem não semelhanças e reconhecimentos mas efabulações e polissemias, dirigidas pela minha afinidade psicoafectiva, pela fruição densa e angustiada.
A fotografia que ancorou a porta da sala até ser aberta, permitindo-nos ver estas escolhas, evoca um segmento de uma das paredes forradas a painéis de azulejos num antigo convento perdido no meio do Alentejo. Esse convento não é apenas um refúgio sazonal, mas um local para onde me dirijo, sempre que o trabalho me leva para essas bandas. Ano após anos, coleciono essas tomadas de vista que alimentam os invernos chuvosos, as neblinas consecutivas e demoradas do Norte. Significam a luz, o calor que se cola no corpo e que tanto se ausenta aqui na terrinha. Por isso, os motivos de paisagens inventadas, repetidas por mestres da azulejaria, são a metáfora mais exata para aguardar, na expetativa do que esteja por detrás e para além de portas fechadas.
O percurso inicia-se pelas cosmogonias (lembrando o que os pré-socráticos nos ensinaram) essas formas míticas e universais que expressam os ritmos do universo. As linhas circulares traduzem uma aceção do tempo sem limites, que recorrentemente, inicia e finaliza para seguir sempre, em redor, um tempo eterno. As formas geométricas (ou que delas derivam nalguma flexibilidade irregular) plasmam as configurações mais simples, condensam a precisão humanista que ainda hoje reconhecemos. Será essa linguagem visual universal que povoa a ideia de Antegrafia, como a denominou Almada Negreiros.
O mundo entendido nas forças mais íntimas traduz-se em invocações da natureza obscurecida e densa, onde os vestígios dos humanos se dissimulam ou reverberam. Entrei numa autoestrada imaginária, que me conduziria adentro de mim. Nessa via, sem ser de sentido único (Walter Benjamin dixit), o caminho é para residirmos juntos, de novo “nós”, para readquirirmos a noção de tempo vivido, usufruído. Vemos as paisagens de um lado e de outro, observamos figuras enigmáticas. Guardam-se as escritas ambíguas, mesmo indecifráveis. Viajamos entre utopias, nossas ou de outrem, que se movem em redemoinhos indomáveis. Deambulamos entre organismos geométricos, geradores de formas vivificadoras. Plasmam-se policromias, oscilações de ritmos anímicos que agudizam as capacidades de usufruto e receção estética, enquanto espetadores mutantes. Há quase uma mensurabilidade de sentimentos, de afinidades eletivas – parafraseando Goethe. Os nossos “mestres”, os nossos poetas, filósofos e artistas preenchem as celebrações e impulsionam a nossa condição humana – a ética da estética, a estética é uma ética, usw. Preservam-se pequenos troços de relíquias, naturais ou artefactos, que foram eleitos por artistas-navegadores de ideias e sonhos. As teias mais ínfimas protegem-nos, sem que se danifiquem apesar da sua fragilidade, pois possuem o âmago lúcido das coisas essenciais. São casulos e bichos de seda a estenderem uma camada invisível e protetora sobre o mundo que nos defende, tanto quanto nos desinquieta e atraiçoa.
Empreendam-se caminhadas aleatórias, percorrendo caminhos incertos. Desenlacem-se, flutuando pelos meus reinos ... diria o génio predileto perdido.
1º andamento - vivace
2º andamento – allegro moderato
3º andamento – allegro ma non troppo
4º andamento – larghetto, andantino
5º andamento – andante molto moderato
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